Ao longo dos mais de 13 anos que mantenho esta conversa mensal critiquei vezes sem conta a parcialidade dos órgãos de comunicação públicos angolanos, que só a espaços têm contribuído para a consolidação da reconciliação nacional e para a melhoria da qualidade da nossa ainda frágil democracia. Em 2017 escrevi aqui que “o MPLA não sabe lidar com a comunicação social em ambiente democrático, e o futuro Governo angolano vai ter de aprender a fazê-lo”. Escrevi ainda que “o MPLA está a ter um papel eticamente condenável no apagamento da oposição, principalmente através da comunicação social”, o que, em ambiente democrático, não favorece o partido no poder, pois a ausência de crítica também prejudica o seu crescimento e desempenho.
Após a vitória eleitoral de 2017 a comunicação social pública passou a conhecer uma espécie de “primavera”. Os cidadãos quase não acreditavam no que passaram a ver, ouvir e ler. Assuntos considerados tabu durante anos, como corrupção e impunidade, deixaram de o ser, e o País real desnudou-se. Jornalistas e comentadores descobriram que, afinal, havia muito mais males para corrigir do que aqueles que julgavam e juravam existir.
No discurso de tomada de posse (2017) o Presidente João Lourenço havia afirmado que “a Constituição será a nossa bússola de orientação e as leis o nosso critério de decisão”, que “a construção da democracia deve fazer-se todos os dias”, que desejava que “…o contrato social estabelecido entre governantes e cidadãos seja permanentemente renovado, através da criação de espaços públicos de debate e troca de opiniões”, que se possa “… exigir o respeito pelos direitos e para garantir a participação plena dos cidadãos na resolução dos problemas das comunidades em que estão inseridos”, e ainda “que estamos longe de atingir o ideal … em matéria de pluralismo [na comunicação social]”, rematando com um “apelo, pois, aos servidores públicos para que mantenham uma maior abertura e aprendam a conviver com a crítica e com a diferença de opinião, favorecendo o debate de ideias, com o fim último da salvaguarda dos interesses da Nação e dos cidadãos”. Havia, pois, e finalmente, sintonia entre a prática e o discurso.
Essa “primavera” durou até 2019, quando os progressos viraram retrocessos. Os vícios antigos regressaram, uma vez mais com os mesmos actores, jornalistas e comentadores. A 19-6-20 numa conversa intitulada “Regressos Indesejáveis” escrevi: “Não chego ao extremo de dizer, como já ouvi, que o contraditório tenha desaparecido da comunicação pública. Mas é certo que o espírito crítico que vimos nos primeiros tempos da Presidência, quando se dizia que voltara a valer a pena ouvir ou ler os media públicos parece estar a ser abandonado gradualmente”. Esse regresso na comunicação social pública consumou-se. Não apenas com o quase abandono do contraditório – que tem agora espaços mínimos e mitigados – como também com a propaganda, massacrante e sem qualidade, e com a chicana em relação aos partidos da oposição.
Sinto-me, pois, no direito de, no exercício da minha cidadania, analisar de modo crítico os acontecimentos do passado dia 11 e seguintes. Com inquietação ouvi comentadores, jornalistas e instituições manifestarem a sua indignação e condenação por supostas agressões, por “militantes, simpatizantes e amigos” de um partido político, a jornalistas da TPA e da TV Zimbo que estavam no exercício da sua actividade profissional. Ouvi e li, também, que as opiniões contrárias a estas tinham o objectivo de desviar as atenções do verdadeiro problema – as supostas agressões. Ouvi e li ainda que ambas as estações televisivas públicas, numa desconcertante sintonia, se achavam no direito de deixarem de cobrir as actividades promovidas pela UNITA. Mas também li (Expansão, 10/9/21) que António de Sousa, Director Nacional da Comunicação Social, sente desconforto pela negligência das regras de “bom jornalismo” por parte dos órgãos de comunicação, tanto privados como públicos. Afinal é a situação destes últimos que preocupa os cidadãos.
Tais jornalistas, comentadores e instituições nunca ao longo dos últimos 18 anos (cinjo-me intencionalmente a este período) se preocuparam com agressões e prisões a jornalistas – e a políticos e activistas cívicos – em várias manifestações. Igualmente nunca se preocuparam com a sistemática violação, por parte de quem de direito, do nº 4 do artigo 17º da Constituição (“Os partidos políticos têm direito a um tratamento imparcial na imprensa pública”, sublinho o pública). Durante esse período, alguns até diziam que, agindo do modo que agiam, isto é, com a sua ostensiva parcialidade, estavam (e estão) a cumprir as linhas editoriais dos órgãos. Está claro, a “ordem superior” acima da lei e da própria Constituição. Ou então desconhecem a sua obrigação plasmada na Constituição, o que é particularmente grave. Terá sido a linha editorial que impediu noticiar a coincidente no tempo revolta popular nos mercados dos Kuanzas e da Asa Branca.
Numa coisa estarei de acordo com o que afirmou um analista afecto ao MPLA: se não houver respeito pelos jornalistas, as eleições não serão livres e justas. Só que acrescento: o mesmo acontecerá se o número 4 do artigo 17º da Constituição continuar a ser ignorado.
Posto isto, devo dizer que condeno em absoluto os actos de violência em geral, e, neste caso, as agressões de que terão, supostamente, sido alvo alguns (quantos?) profissionais da comunicação social. Digo supostamente porque não foram confirmadas por fontes independentes. Se houve agressões físicas, estranho o facto de, em nenhum momento, terem aparecido as vítimas a relatar os episódios de violência, ou a mostrar outras evidências, e estranho ainda mais não ter havido qualquer referência ao papel da Polícia que terá acompanhado a manifestação e que, seguramente, teria agido para defender as vítimas ou neutralizar os agressores. Estranho, mesmo!
Ao fazer esta análise crítica move-me o desejo de alertar os actores políticos e sociais e as autoridades públicas para a delicadeza da situação que estamos a viver. Na linha do que tenho feito ultimamente. A temperatura política está a subir à medida que o tempo passa e os problemas sociais permanecem sem solução. As preocupações dos cidadãos que se manifestaram no sábado, e talvez de milhões por Angola fora, têm a ver com as imensas, ou mesmo insuportáveis, dificuldades do seu quotidiano, e é expectável que não seja do seu agrado que a comunicação social não aborde tais preocupações de modo consistente. Em vez disso, recebem banhos de propaganda, que tem normalmente efeitos perversos. Com a atitude do ministério de tutela, que em vez de se assumir como árbitro e procurar soluções pela via do diálogo, divulgou um comunicado insensato e parcial; associada a outras reacções aos acontecimentos de sábado, aumenta a desconfiança dos cidadãos em relação às instituições, está-se a deitar gasolina na fogueira.
Foi antecipando acontecimentos como este e para evitar males maiores que propus aos partidos um pacto de convergência democrática. A decisão de se reanalisar os pontos de discórdia da Lei de Alteração à Lei Orgânica das Eleições pode ser um passo nessa direcção, a que se devem seguir outros, incluindo o da implementação da nova Divisão Político Administrativa apenas depois das eleições, dadas as suspeições já manifestadas.
PS. É confrangedor que não se perceba que o empolamento de casos como o de sábado tem consequências nefastas na imagem do Executivo angolano. Já há bastantes, outras não tardarão.